quinta-feira, 1 de julho de 2010

(sem título)

No mesmo restaurante de sempre lá estava a placa com indicação de reserva da mesa.
Numa ilha, com uma área geográfica muito extensa, que não se perdia de vista apenas porque o território se apresentava plano. Uma única montanha constituía o limite visual que definia o horizonte e o fim da ilha.
Nenhum dos habitantes tinha sentimentos, nem nunca imaginara o que poderiam ser, a única coisa que faziam era respeitar a ordem natural daquele lugar, nunca nenhum deles tinha alterado nem por um milímetro a rota pré-definida da sua conduta.
Não existia a noção de tempo, por isso nunca se fartam de esperar, nem sequer esperavam por nada, nunca desejavam que o tempo parasse, não pensavam no passado nem projectavam o futuro.
Havia quatro de cada cor e, a regra ditava que irmãos não teriam filhos. Estava definido que só entre a mesma cor poderiam procriar. Cada casal poderia ter apenas dois filhos, e seria um de cada sexo. Os filhos do casal da rua de cima iriam procriar com os filhos do casal da rua de baixo. Cada novo casal, viveria em casa dos pais da filha, e assim com os seus descendentes se passaria o mesmo.
Na etapa quinze dos procedimentos da conduta definida, os filhos da casa de baixo encontravam-se com os filhos da casa de cima, no restaurante com mesa marcada para tal.
Sairiam do restaurante na etapa dezasseis e continuariam até à etapa vinte onde teriam filhos.
A mesa do restaurante ficava automaticamente reservada para os seus filhos.
Ninguém tinha um nome, uma idade, uma roupa, nem pele, nem sentimentos, nem sequer sentidos, tinham apenas uma conduta.
A conduta nunca permitia que qualquer erro pudesse acontecer, os filhos dos pais da casa cima nunca iam para a casa de baixo, a não ser o filho na respectiva etapa.
Como o funcionamento de um relógio, em que a hora só passa ao fim de sessenta minutos. Quando havia uma mudança, era mecanizada.
Como se houvesse um carril de comboio onde fosse impossível descarrilar. A conduta era simplesmente inquebrável, a conduta não permitia erros, nem sequer existia o erro.
Durante o Verão, todos os dias, o quarto filho e a filha mais nova do casal Alves viram aqueles desenhos-animados.
Estavam quase a começar os dias de Inverno quando os dois irmãos disseram aos pais que estavam exaustos de ver sempre a mesma coisa e, que não percebiam porque é que se tinham fartado de algo que outrora adoravam, pois nada, mas rigorosamente nada tinha mudado naqueles desenhos-animados.
Foram ao restaurante de sempre jantar, a mesa estava pronta. Uma toalha simples, com um vermelho escuro a dar-lhe cor, os bancos eram os mesmos de sempre, madeira em tronco cortado com formas planas e envernizada com um castanho escuro.
Ouviram música, comeram e, beberam um vinho velho com um paladar que não se poderia esquecer, era denso, uma cor escura e uniforme que não permitia ver o copo do outro lado, mas que se via de um lado ao outro, como uma peça única que é possível ver na sua totalidade sem ser pela percepção do limite do copo.
Trocaram alguns sorrisos quentes, muito íntimos, um ferver nos lábios roubava-lhes a vontade de se beijarem, como se o vinho os tivesse unido na embriaguez de serem um só.
¬- O que havemos de responder aos nossos filhos?
- Olha, estava aqui a pensar, e não percebo porque vimos sempre a este lugar.
- Ora, porque é especial.
- Mas quando nos conhecemos gostávamos de ir a tantos lugares diferentes, o que mudou?
- Não te recordas do tempo que passámos juntos, naquela tasca, todas as sextas, a que íamos com os nossos amigos quando ainda nem namorávamos?
- Lembro sim, mas acabámos por nos fartar.
- Não nos fartámos, só começámos a querer conhecer lugares diferentes.
- Isso foi desde que fomos passar aquele fim-de-semana a casa do meu primo, aquele lugar era inacreditável.
- Lembraste daquele lago cheio de flores amarelas em seu redor?
- Foi onde demos o nosso primeiro beijo.
- É verdade, foi… foi maravilhoso.
- Começámos a viajar a novos lugares e o teu beijo era sempre uma melodia harmoniosa e equilibrada, ainda hoje é.
- Então porque deixamos de viajar?
- Oh, sei lá, tivemos os meninos, tínhamos de ter tempo para eles.
- É verdade, mas também já não era preciso conhecermos mais lugar nenhum.
- Tudo, qualquer lugar se tornou perfeito só por estarmos juntos.
- Foi nessa altura que começámos a vir a este restaurante.
- Tornou-se simplesmente a nossa mesa.
- Sinto o calor do vinho entre as pernas.
- Jo…
- Boa noite meus Sr.’s a vossa conta por favor.
Saíram do restaurante e caminharam em linhas curvas até ao carro.
Com o que tinham bebido terem ido para o carro poderia ter saídas maravilhosas ou assustadoras. Podiam ter feito sexo, poderiam ter tido um acidente a caminho de casa, poderiam ter ficado sem bateria e o carro não ligar, poderiam ter simplesmente ido até casa e dormido.
A mulher do Sr. Ferreira desligou a televisão.
- Estou farta destas novelas, os miúdos a verem parvoíces na televisão e os pais em vez de conversarem com eles vão jantar fora.
- Ao menos podiam ter feito…
Alguém abriu a porta do restaurante e se dirigiu ao balcão dizendo que tinham uma reserva.
Sentaram-se e os donos do restaurante serviram o almoço.
Trocaram ideias sobre o negócio que tinham pendente, falaram de futebol e de mulheres.
Risadas, era o que se ouvia ecoar no restaurante.
O restaurante costumava encher assim que terminava a novela, mas naquele dia, à excepção dos homens de fato que reservaram a mesa para o almoço de terça para falarem de negócios fora do escritório, não havia mais ninguém.
- Mas que se passa hoje? Não vem mais ninguém?
- Tem paciência, ainda é cedo.
- Mas que livro é esse que estás a ler?
- É um romance meio estranho, cheio de rodeios.
- Então porque o lês?
- Para fazer tempo enquanto os nossos amigos não chegam.
- Mas tu nem gostas de ler, porque…
Suou a campainha. Era a vizinha do lado do casal Machado. Tinha ido levar-lhes um vinho que trouxera da casa de um primo e, que recomendava como algo a não perder.
Chegaram os amigos, as crianças foram dormir, provou-se o vinho e, no canto da sala, a Sra. Almeida segredou ao Sr. Costa, sem que os respectivos se apercebessem.
- Quinta-feira jantamos no restaurante do costume?
- Às nove?
- Nove e meia, eu reservo a nossa mesa.
O jantar terminou.
Nem queriam acreditar, o Sr. Almeida acabara de entrar e, olhou para eles como se fossem desconhecidos, com um fervor que tornou o vinho azedo na boca dos amantes.
Levantou-se o Sr. Costa a cumprimentar o Sr. Almeida mas foram interrompidos pelo empregado que se dirigiu ao Sr. Costa.
- Desculpe Sr. Costa mas não temos o licor que costumam beber.
Enquanto o empregado se dirigiu ao balcão, não passou nem meio minuto, mas foi o suficiente para os ânimos se exaltarem.
- Estão a brincar? O licor do costume?
- Isto não é o que está a pensar Sr. Almeida.
- É pois, isto é a vida real. Ou estarei a sonhar? É bem real. O Sr. devia ser uma máquina, não poder pensar, isso a si não lhe serve de nada mesmo.
Nunca ouviu falar em respeito?
E tu Andreia, Não dizes nada?
- Tu sabes que somos bons amigos, aliás, amigos desde crianças.
- Por isso é que são tão íntimos?
Quando levantou a mão ao Sr. Costa, a mulher gritou.
- Somos irmãos.
- Não… não estou a perceber, que história é essa?
- O nosso pai, encontrou a Andreia numa conduta da fábrica e tomou conta dela.
- Que história é essa da conduta?
O teu pai não tinha morrido?
- Pois é Sr. Almeida, sempre escondemos a história para não se criar uma má imagem da Andreia.
Ouviu-se um estrondo enorme à porta do restaurante. Foram todos a correr ver o que se passava.
Na azafama da confusão o Sr. Almeida nem se lembrou de perguntar pela mãe da sua esposa.
Uma semana depois, ainda atordoado com aquela história, o Sr. Almeida perguntou à mulher como era tudo aquilo possível se ela vivia com a sua mãe.
Andreia explicou-lhe que a mãe deles nunca tinha aceitado bem aquela adopção. Por isso a colega do seu pai na fábrica fora tomando progressivamente conta dela.
Assim que terminou o filme, o jovem casal saiu do cinema e foi almoçar ao restaurante onde era já habitual irem. A mesa estava reservada.
Ambos afirmaram ter tido um dia enfadonho e igual a todos os outros, o dia de trabalho tinha sido mais uma robótica rotina posta em prática.
Ninguém estava à espera.
À dez anos que lá iam, mas a verdade é que se levantaram, foram até à porta, acenderam um cigarro, e depois do desfrute tranquilo, trocaram um olhar cúmplice, um sorriso malandro e, começaram a correr. Tinham fugido sem pagar.


por Bruno Almendra

Maio, 2010

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